Viajei recentemente a João Pessoa para comemorar o niver de minha mãezinha, e fiz um passeio que tinha o famoso pôr do sol na praia do Jacaré, em Cabedelo, um distrito perto.

Não é uma praia, e sim o Rio Paraíba. Virou uma das maiores atrações turísticas de João Pessoa. Várias lojinhas (diga-se o melhor do artesanato da cidade), restaurantes e pousadas se agruparam por lá, e o lugar que já é especial, ainda ganhou a trilha sonora diária do Bolero de Ravel, tocado pelo músico Jurandy do Sax, faça chuva ou faça sol, desde 2001.

Lá, as pessoas se acotovelam na Orla para esperar ele passar de bote no Rio com seu Sax, entre 17 a 17:20 hs.

E como todas as pessoas, ficamos por lá. Fizemos várias comprinhas, e aguardamos o Gran Finale de nosso passeio.

O pôr do sol não apareceu. Depois de um dia lindo, uma nuvem danadinha tampou o belo espetáculo.

Com tanta gente amontoada, o som do Sax ficou longe, longe, pois os gritos da criançada ali dominavam tudo.

Com muito esforço, eu ouvi um fundinho do Bolero de Ravel. Minha mãe e minhas companhias de viagem logo cansaram do berreiro predominante da galera e se refugiaram na van do passeio.

Eu fiquei até o final. Não tive na hora a experiência incrível, pois o certo seria na hora todo mundo ficar em silêncio e ouvir a música. Brasileiros somos, e temos nossas virtudes e defeitos. Silêncio e respeito ao espaço público não é exatamente uma qualidade nossa.

O sentimento geral da turma foi uma experiência meio broxante, porque não teve pôr do sol, nem teve o Jurandy (era um músico substituto no dia) e nem o Bolero, só o Berreiro de Ravel.

Depois, baixei o Bolero de Ravel no meu Spotify e o ouvi com um Fone de Ouvido corta ruídos e abafa gritaria de humanos na praça do meu Bairro, que dá vista para um pôr do sol digno, mas claro, nada como deve ser o do Rio Paraíba.

Confesso que sempre gostei da melodia mas nunca parei para baixar a música e ouvi-la inteira.

Coisas da arte: me emocionou de uma forma tão profunda que dá até dor de estômago e arrepio na alma. Para outras pessoas pode ter um significado diferente.

Para mim, essa música com o entardecer, me remeteu a morte de meu pai, à ida dele para o outro plano. Talvez até meu envelhecimento.

O Bolero de Ravel tem uma melodia repetitiva que vai crescendo até seu fim. Mesma melodia, tons diferentes. A cada passagem, é claramente uma música diferente, mas com a mesma estrutura. Não sou erudita em música, então perdoem minha tosquice em descrever. Mas é uma música que não muda de refrão, não tem um fechamento, é a mesma melodia, tocada em crescente intensidade.

Mas é uma melodia tocante, única, arrebatadora. Como a vida humana. Esplêndida.

Não precisa ter conquistado novos continentes, ou ter descoberto a pílula da longevidade. O fato de existirmos, de termos nossa vidinha que às vezes consideramos inútil ou pequena demais, é uma melodia em si e algo único.

Como foi a vida dele. Ele nunca mudou seu caráter, sua personalidade engraçada e irônica, seu jeito de ser. A cada década, o figurino, a paisagem, os quilos mudavam. Mas seu espírito estava ali, sempre reconhecível.

E a cada crescente de som, culminando com o pôr do sol, pulsando em seu máximo até o fim, é o que eu vi dele.

O câncer pode ter tirado seus cabelinhos tingidos (mas olhe só, depois da quimio até nasceu uns cabelos pretos naturais), seu apetite, seu bom humor, mas não tirou seu espírito. Até o fim eu joguei tranca com ele (e ele 12 horas antes de ser entubado e nunca mais voltar a si, ganhou 3 partidas de mim de lavada), vi ele se decepcionar com seu Palmeiras mais uma vez na Copa da Libertadores e Mundial, querer minha mãe do lado dele sempre, vi sua racionalidade falando com os médicos até seu fim.

E tal como um pôr do sol perfeito onde o sol brilha e tem sua cor máxima dourada nos seus últimos momentos do dia, ele teve comigo as conversas mais sinceras e amorosas, as lembranças mais doces de quando conheceu minha mãe e quando meus irmãos eram pequenos.

É assim que vejo nosso envelhecimento: cada minuto , nós, que somos o sol, sabemos que haverá um momento onde iremos finalmente repousar. Mas até o fim, estaremos brilhando. E no fim, brilhamos forte, muito mais do que no início do dia. Estamos carregados de emoções, experiências, vida, conexão com nossos seres amados.

Cada vez me vejo mais uma mulherona que tem opinião, sem vergonhice, fala, respeito, atitude. Creio que vocês também.

Não sei quem foi que inventou que o Bolero de Ravel casa perfeitamente com um Por do Sol, e mesmo que tenha sido usado para fins financeiros turísticos, é um gênio.

Descobri depois na minha cidade, perto da minha casinha, a tremenda oportunidade que Deus nos deu de experienciar a vida terrena e usufruir cada raio de vida que temos.

Pai, de onde você estiver agora, sei que está comigo em cada pôr do sol a partir de agora e sempre.

E termino dizendo que viajar é mesmo um tempero na alma: cada vez que volto de uma viagem, volto com uma bagagem emocional, intelectual, espiritual a mais. Viagem, meus amores. Beijo no coração. Façam o por do sol com o Bolero de Ravel de onde estiverem. É incrível.