No ano passado, cheguei a fazer uma crônica esperançosa de como uma tragédia jamais vista no mundo moderno talvez mudaria o ser humano para melhor.
Passado um ano, e ainda viva (e até agora não Covidada) eu partilho um tom mais pesaroso e amargo de acordo com situações que presenciei nas últimas semanas.
Ainda sim, continuo esperançosa, pois acima de tudo, sou ser humano e o humano , talvez sua melhor característica é ter esperança em tudo.
Contudo, o que venho presenciando me dá uma vergolha alheia total. Somos terríveis.
Semana retrasada a casa de uma conhecida foi invadida e ela, sob a mira de um revólver, durante 3 horas sofreu o pesadelo de ter sua casa depenada, levarem jóias de sua avó, computador e televisão que tinha acabado de pagar, objetos de valor pessoal inestimável , fora o trauma de ter sofrido uma coronhada na cabeça sem ter reagido, empurrada no chão e ameaçada de morte .
Esta semana, ela me contou a história. E disse que eu fui a única pessoa de todo mundo que não ficou perguntando detalhes mórbidos como: se ela foi agredida, como os bandidos entraram na casa, e principalmente, o que roubaram de valor. E me agradeceu.
Porque naquela hora a última coisa que ela queria era relembrar a angústia do momento, o rosto dos bandidos, e a raiva de ter seu patrimônio conquistado com muito trabalho depenado em horas. Ela só queria desabafar, e do jeito dela, contando apenas o que gostaria de contar.
E porque eu fui a única a ter a empatia de respeitar o espaço dela?
Não sou um elemento ultra iluminado com modéstia. É porque eu passei na pele o que ela passou.
Há 12 anos atrás, eu sofri um assalto terrível na residência onde morava com meus pais. Os bandidos ficaram 4 horas , à procura de um cofre que não existia, apontando armas para meu rosto e de meu pai e de minha mãe, e roubaram objetos conquistados ao longo de uma vida: jóias de minha bisavó, alianças, eletrodomésticos. E o trauma, o trauma , o trauma.
Nos dias seguintes, eu queria ficar só, e esquecer este assunto para não pirar. Quando era impossível de fugir do assunto, eu não recebi acolhimento de quase ninguém, nem de pessoas próximas a mim, e nem de familiares. Nem eu, nem meu pai, que sofreu um AVC , e minha mãe. Digo, posso contar nos dedos as pessoas que estavam apenas lá para nos confortar e nos ouvir, sem fazer demandas e saciar sua curiosidade de abutre.
A grande maioria, e digo amigos próximos, parentes, queriam mesmo é saber das tragédias: se eles nos bateram, quantas armas tinha, o que levaram de valor.
Nada do que eles perguntaram podia ser para nos ajudar a reparar o dano material ou psicologico que sofremos. Era para saber da desgraça alheia mesmo, para eles mesmo se sentirem melhor. Ser humano é uma merda às vezes.
Em 2018, quando fui assaltada a 3 quadras da minha casa, ninguém na rua ligou para a polícia para vir a meu socorro, embora fiquei 2 bons minutos gritando com os ladrões (loucura minha). Ficaram os funcionários da farmácia, dos restaurantes e dos bares apenas assistindo de camarote. Depois que os ladrões saíram, essas pessoas saíram das catacumbas para ver se eu tinha tomado um tiro (tinha sofrido uma coronhada na cabeça e estava sangrando) e em vez de me perguntarem se eu estava bem e se precisava chamar uma ambulância, me perguntaram o que tinha sido roubado e porque eu tinha sido tão louca de ter reagido.
Dessa vez eu fiquei com raiva. E coloquei nas minhas redes sociais para demonstrar que a cidade não estava segura, que eu tinha sido roubada às 20 horas da noite em uma via de movimento, e que tivessem muito cuidado. Antes tivesse ficado quieta.
O que choveu de abutres me ligando (pessoas que não falava há anos) para perguntar o que houve e como tinha sido não foi brincadeira.
E pessoal, quando eu digo abutres, são pessoas da sua família, são amigos de longa data sim. E daí vamos desmitificar que essas pessoas não prestam. Foram estúpidas sim, insensíveis, mas não querem meu mal e estão do meu lado (na maioria das vezes).
É essa terrível característica do ser humano em se valer da tragédia alheia, e se for de seus conhecidos melhor ainda, para se sentir melhor ou afortunado.
Não o fizeram por mal. Apenas a ignorância e a cegueira pela desgraça. Quando uma conhecida insistiu em saber o quanto tinham me roubado, me posicionei e perguntei a ela se ela queria saber para dar pulos de alegria, ou para realmente ajudar a resgatar o roubo. Ela entendeu o recado, e envergonhada, se calou.
Acho que no Brasil o crime infelizmente compensa. Desde políticos até os desgraçados que nos roubaram. O pior é ouvir de pessoas que nós deveríamos ter pena deles, pois não sabemos sua realidade terrível e a vida fez com que eles cometessem esses crimes. Então o crime se justifica e devemos perdoá-los e continuar nossa vida.
Eu jamais perdoei esses bandidos. Torço todos os dias para que eles morram de uma forma terrível e sofram na terra tudo o que fez minha família passar.
Eu trabalho para uma ONG onde convivo com meninas que possuem famílias desfeitas, muitos problemas e perrengues financeiros, e jamais compararia elas com os bandidos que entraram na minha casa bêbados, drogados e dispostos a matar qualquer que fosse. Para garantir o leite da família? Ou para ostentar um tênis de marca vindo com a desgraça e humilhação aos outros?
E torço todos os dias para que essas pessoas que possuem pena dos bandidos e também fazem uma glamourização da bandidagem, que sofram o mesmo que sofremos para ver se a atitude deles continua a mesma.
Vamos lá. Contei tudo isso para chegar na minha conhecida que sofreu o roubo. Ela lembrou da minha história. E revelou que na época, achou que eu tava desestabilizada por querer bandido morto ou pelo menos preso pelos crimes que ele cometeu.
Depois de ter sofrido na pele, ela finalmente consegue se colocar do meu lado e sentir a raiva que eu senti e sinto até hoje. De bandido poder matar, estuprar, e na melhor das hipóteses invadir sua casa e roubar todos os seus bens materiais de direito e traumatizar sua família. E esses bandidos serem perdoados imediatamente por alguns, nunca serem punidos.
Isso é a empatia que falta em todos nós.
Infelismente, o ser humano só cria a empatia, quando estamos na pele do outro, ou quando passamos pelo que o outro passou. Imaginar, é tarefa impossível e superficial.
Não gostaria que todos passassem pelo trauma que passei para defender o que defendo e exigir penas duras para assaltantes.
Não gostaria que todos tivessem que ter uma arma apontada na cabeça, entregar seu anel de noivado, seu brinco dado pela sua bisavó para evitar de perguntar para um terceiro sobre o que eles roubaram de valor.
E isso acontece em escala exponencial com o Covid-19 hoje.
É preciso sofrer na pele o que esta terrível doença pode causar, estar prestes a ir para entubação, para depois apagar seus posts sobre suas festinhas e sua rebeldia contra o confinamento.
E aqui não faço apologia a nenhum político. Não sei o que é pior, se o que ajuda a piorar a situação, ou aquele que aproveita da situação para se alçar ao poder. Já vi muita amizade desfeita por discussão e defesa de quem, honestamente está cagando para sua cabeça.
O Covid mostrou o pior e o melhor do ser humano. Tem gente que está se dedicando integralmente ou no tempo dela para ajudar genuinamente as pessoas, sejam os médicos, enfermeiros ou pessoas de ONGS.
E o pior do ser humano em larga escala: e daí nem preciso citar os casos extremos das pessoas que vão ser internadas porque acharam que era tudo conspiração chinesa ou fake news. Está em todos os lugares, de todas as formas. Vai desde a menina de 21 anos que foi comemorar com amigos e passou para seus avós, até pessoas que estão usando a tragédia para atingir verbalmente outros não porque estão querendo ajudar o mundo, mas porque usam suas frustrações pessoais para descontar em outros. Isso vale para os que estão atacando asiáticos sem motivo, para aquele que ataca pessoas de partidos políticos mas não mexem um dedo para ajudar o próximo.
O Covid, através de sua mortalidade avassaladora e sua dissimulação (sim, porque quando dizem que você acha que se recuperou, ele vem com tudo), ceifou vidas e negócios de família centenários, mas acima de tudo mostrou que a principal doença moderna é a falta de empatia. Todos nós estamos conectados em nosso celular, olhando nossos problemas e cagando para o outro. Isso no Brasil, na França, na Itália, nos EUA. Ficamos aliviados e porque não, até com uma gotinha de vitória quando o outro adoece, é assaltado, pega Covid e só quando alguém próximo de nós ou nós mesmos sofremos, é que revemos nossas atitudes.
Mas como eu disse, há uma gota de esperança. Todos os conhecidos que sei que saíram vivos para contar sua história, estão mais humildes e certamente mais empáticos. As festinhas estão suspensas até a tomada da vacina, pelo menos.
Espero que nem eu, nem você, tenhamos que passar por isso para aprender a sermos mais empáticos. E não escrevo isso para dar uma lição não. Quando eu escrevi este texto, me passou várias imagens na minha cabeça de situações passadas que fui uma escrota, insensível. E que sim, a gente precisa se policiar para se colocar no lugar do outro. Só assim sairemos desta.
Obrigada por ler até aqui. Beijo no coração. Estamos juntos na luta.